Uma decisão monocrática que precisa ser revertida
Matéria publicada no Jornal O Estado de S. Paulo: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/uma-decisao-monocratica-que-precisa-ser-revertida/
I – O FATO
Em 9 de julho deste ano, durante o plantão, o presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), João Otávio Noronha, concedeu prisão domiciliar para Queiroz e sua mulher, alegando questões de saúde do ex-assessor e que a prisão preventiva foi proferida por juiz sem atribuição para o caso, já que o Tribunal de Justiça do Rio decidiu enviar a investigação para o órgão especial do TJ.
Segundo o site Poder 360, o Ministério Público Federal recorreu contra a decisão de Noronha, que concedeu prisão domiciliar a Fabrício Queiroz e à mulher dele, Márcia Aguiar.
Destaco o pronunciamento do subprocurador-geral da República Roberto Luís Oppermann Thomé.
Ele aponta a “inexistência de ilegalidade” na prisão preventiva de Queiroz, cita que a jurisprudência impede a concessão de benefícios para alvos foragidos, como era o caso de Márcia Aguiar, e solicita que seja restabelecida a prisão deles.
“Conquanto cediços cultura jurídica e espírito público do ínclito Ministro Presidente, sua v. decisão monocrática, ora agravada, merece integral reforma para que se respeite até mesmo a percuciente, abalizada e escorreita fundamentação lavrada em oito de dez laudas pela inexistência de ilegalidade alguma na necessária constrição judicial cautelar, e mesmo se resgate o respeito à iterativa jurisprudência pátria que rechaça concessão de benesses a pessoas que se encontrem foragidas da Justiça”, escreveu o subprocurador.
Ao final da manifestação, ele solicita que o relator conceda monocraticamente a reforma da decisão ou leve o assunto para a Quinta Turma do STJ.
II – A PRISÃO DOMICILIAR
Discute-se com relação a possibilidade de concessão de benefício de prisão domiciliar.
A prisão domiciliar é uma forma alternativa de cumprimento da prisão preventiva; em lugar de manter o preso em cárcere fechado é inserido em recolhimento ocorrido em seu domicílio, durante 24 horas.
Cuida-se de uma faculdade do juiz, atendendo às peculiaridades do caso concreto, desde que respeitado algum dos seguintes requisitos: a) ser o agente maior de 80 anos; b) estar o agente extremamente debilitado por motivo de doença grave; c) ser o agente imprescindível aos cuidados especiais de pessoa menor de seis anos ou com deficiência; d) ser gestante a partir do sétimo mês de gravidez ou sendo esta de alto risco.
A prisão domiciliar não pode ser banalizada, estendendo-se a outros presos, diversos do que estão elencados, expressamente nos incisos I a IV do artigo 318 do CPP.
A precariedade do estado de saúde do preso, na situação prisional a que se acha submetida, quer parecer que há violação à norma constitucional que determina, ao estado e a seus agentes, o respeito efetivo à integridade física da pessoa sujeita à custódia do Poder Público (artigo 5º, inciso XLIX, da Constituição Federal).
Ademais, o art. 40, da LEP, exige de todas as autoridades o respeito à integridade física e moral dos condenados e dos presos provisórios; sendo que o direito à saúde vem reafirmado no art. 41, VII, do mesmo Diploma. E mais, atualmente o próprio Código de Processo Penal veio a disciplinar a prisão domiciliar para presos, sejam provisórios ou condenados. O ministro Luis Roberto Barroso, no passado, se manifestou a favor da prisão domiciliar monitorada para criminosos não violentos. Defendeu essa posição, na conferência de encerramento da Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, realizada em Curitiba, em 24 de novembro de 2011. Foram as seguintes as suas palavras:“ No sistema penitenciário, é preciso não apenas dar condições mínimas de dignidade às unidades prisionais, como também pensar soluções mais baratas e civilizatórias. Como, por exemplo, a utilização ampla de prisões domiciliares monitoradas, em lugar do encarceramento. Quem fugir ou violar as regras, aí, sim, vai para o sistema. Para funcionar, tem de haver fiscalização e seriedade. Não desconheço as complexidades dessa fórmula, a começar pela circunstância de que muita gente sequer tem domicílio. Mas em muitos casos ela seria viável”.
Afirmou Paulo Rangel (Direito processual penal, 20ª edição, pág. 880) que “a prisão domiciliar processual nã se confunde com a medida cautelar de recolhimento domiciliar em período noturno. Aqui (artigo 317) o indivíduo está preso processualmente, isto é, existe um mandado de prisão em seu desfavor, mas que será cumprido em sua residência por preencher os requisitos na lei. No recolhimento domiciliar (artigo 319, V), há uma medida também cautelar, mas que limita o ius libertatis do indivíduo apenas durante o repouso noturno e nos dias de folga, desde que tenha residência e trabalhos fixos.
Nessa linha de pensar Guilherme de Souza Nucci (Prisão e liberdade, São Paulo, ed. RT, pág. 77) lembra que o acolhimento de doença grave, previsto no artigo 117 da Lei de Execucões Penais, tornou-se, com a Lei 12.403/11, que disciplina a matéria, no artigo 318, II, do Código de Processo Penal, extrema debilidade por motivo de doença grave. Portanto, não basta a presença de grave enfermidade, sendo igualmente necessário que o apenado esteja por ela bastante debilitado.
O Superior Tribunal de Justiça, porém, tem entendimento, do que se vê do julgamento do HC 246.419 –SP, Relatora Ministra Laurita Vaz, DJe de 28 de maio de 2013, de que se pode conceder ao condenado em regime fechado ou semiaberto o benefício de prisão domiciliar, quando resta demonstrado que o recluso é portador de doença grave e que não é possível a prestação da devida assistência médica no estabelecimento penal em que esteja recolhido, fundamento esse reiterado ainda no julgamento do HC 271.060 –SP e no julgamento do HC 152.252 –MG, Relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho.
Não bastam meras alegações de que o investigado se encontra acometido de enfermidade, mas se requer a demonstração inequívoca da debilidade extrema, bem como da impossibilidade de tratamento no estabelecimento prisional.
É firme a jurisprudência deste Tribunal Superior no sentido de que o deferimento da substituição da prisão preventiva por prisão domiciliar, nos termos do art. 318, inciso II, do Código de Processo Penal, depende da comprovação inequívoca de que o réu esteja extremamente debilitado, por motivo de grave doença, aliada à impossibilidade de receber tratamento no estabelecimento prisional em que se encontra, não bastando para tanto a mera constatação de que o recorrente sofre de doença que necessita de tratamento.
Ausente a demonstração inequívoca de que o estado de saúde do investigado se encontre seriamente comprometido ou mesmo que não esteja recebendo o tratamento adequado no estabelecimento onde está recolhido, não se faz possível a concessão de prisão domiciliar (RHC n. 96.540/RJ, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, Sexta Turma, julgado em 13/8/2019, DJe 29/8/2019).
Ora, se a decretação da prisão preventiva restou devidamente motivado com base na gravidade concreta do crime, considerado o modus operandi, na periculosidade do ora investigado, no riscoda reiteração delitiva, de obstrução à instrução criminal para produção das provas e de aplicação da lei penal, ressaltando-se ainda a condição de foragida da ora investigada, tudo está a demonstrar a insuficiência da aplicação das medidas alternativas previstas no artigo 319 do CPP
Será que o estabelecimento em que estava detido Queiroz era incapaz de fornecer cuidados médicos para a doença que diz ter? O estabelecimento prisional apontado não seria capaz de cuidar de um preso por conta das consequências da covid-19?
III – A APLICAÇÃO DO CPC DE 2015
O presidente do STJ João Otávio Noronha concedeu prisão domiciliar para Queiroz e sua mulher, alegando questões de saúde do ex-assessor e que a prisão preventiva foi proferida por juiz sem atribuição para o caso, já que o Tribunal de Justiça do Rio decidiu enviar a investigação para o órgão especial do TJ.
Com o devido respeito, entendo que a decisão proferida por juiz que venha a ser considerado absolutamente incompetente não traz necessariamente a nulidade de prisão preventiva por ele conferida.
A matéria deve merecer aplicação do Código de Processo Civil de 2015, uma vez que o próprio CPP permite a aplicação da lei processual civil de forma subsidiária.
A esse respeito, Daniel Amorim Assumpção Neves ensinou: “No novo diploma processual o tratamento passa a ser homogêneo, prevendo o art. 64, § 4º do Novo CPC que os atos praticados por juízo incompetente são válidos, devendo ser revistos ou ratificados (ainda que tacitamente) pelo juízo competente. Significa dizer que durante o período de trânsito dos autos, que compreende a remessa dos autos pelo juízo que se declarou incompetente e sua chegada ao juízo competente, todos os atos já praticados continuaram a gerar efeitos, ficando a continuidade da eficácia de tais atos condicionados à postura a ser adotada pelo juízo competente que receberá os autos” (Manual de Direito Processual Civil. Salvador: Editora JusPodium, 2016. p. 166).
O Código de Processo Penal não trata do assunto de forma contrária ao NCPC.
Embora o art. 567 do CPP disponha que “a incompetência do juízo anula somente os atos decisórios, devendo o processo, quando for declarada a nulidade, ser remetido ao juiz competente”, a leitura desse dispositivo em conjunto com o art. 563 daquele diploma normativo permite inferir que, mesmo na seara processual penal, o aplicador da lei deverá sempre procurar a convalidação e o aproveitamento dos atos processuais praticados.
O art. 64, § 4º, do CPC vigente, adotando orientação inovadora, optou por homenagear a estabilidade e estimular o aproveitamento dos atos praticados pelo juízo reconhecido como incompetente, conservando seus efeitos até a ulterior e necessária manifestação do juiz natural da causa.
O § 4º do art. 64 do CPC de 2015 dispõe que os efeitos das decisões serão conservados, “salvo decisão judicial em sentido contrário”. O legislador conferiu ao órgão de cassação, portanto, uma espécie de poder geral de cautela, a fim de que, nos casos em que tal se fizer necessário, proceda esse último, de imediato, à análise da conveniência de se manter um ou mais atos decisórios.
V – CONCLUSÕES
A decisão acima historiada foge dos parâmetros aqui apresentados. E mais, permite que uma pessoa foragida da justiça consiga retornar ao convívio do marido sob o pretexto de exercer deveres do casamento, como o tratamento ao cônjuge.
O STJ (Superior Tribunal de Justiça), que concedeu prisão domiciliar para Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio Bolsonaro, por causa da Covid-19, já negou o mesmo benefício para o preso acusado de furtar dois xampus, de R$ 10 cada.
A decisão contrária ao jovem foi do ministro Felix Fischer. Em seu despacho, ele citou decisão de outro ministro do STJ, Rogerio Schietti Cruz.
Segundo o Estadão, o ministro Noronha negou um pedido da Defensoria Pública do Ceará para tirar da cadeia presos de grupos de risco, como idosos e gestantes, em virtude da pandemia do novo coronavírus. A pandemia e o estado de saúde de Queiroz foram argumentos usados pela defesa do ex-assessor de Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) para tirá-lo do presídio de Bangu.
Em fevereiro de 2020, o presidente do Superior Tribunal de Justiça, ministro João Otávio de Noronha, negou pedido de liminar para que uma mulher acusada de tráfico de drogas, mãe de três filhos menores de 12 anos, pudesse cumprir a prisão preventiva em regime domiciliar.
O ministro Noronha considerou hipótese de situação excepcional e negou prisão domiciliar a mãe de menores
Para o ministro, as circunstâncias do caso podem caracterizar situação excepcional que impediria o benefício da prisão domiciliar, previsto nos artigos 318 e 318-A do Código de Processo Penal (CPP).
Lembro que no julgamento do HC 337183, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que, enquanto eventual ilegalidade da ordem de prisão preventiva não for reconhecida pelo próprio Poder Judiciário, o réu não pode alegar um suposto direito à fuga para pretender que sua condição de foragido seja desconsiderada como fundamento do decreto prisional.
Ora, se a decretação da prisão preventiva restou devidamente motivado com base na gravidade concreta do crime, considerado o modus operandi, na periculosidade do ora investigado, no riscoda reiteração delitiva, de obstrução à instrução criminal para produção das provas e de aplicação da lei penal, ressaltando-se ainda a condição de foragida da ora investigada, tudo está a demonstrar a insuficiência da aplicação das medidas alternativas previstas no artigo 319 do CPP.
De acordo com o ministro Schietti, se a autoridade judiciária competente decreta a preventiva com fundamento na fuga do réu, ou se essa condição de foragido passa a ser considerada posteriormente para sustentar a ordem, justifica-se a manutenção do decreto prisional como meio de assegurar a aplicação da lei penal, com base no artigo 312 do CPP.
“Se pretende continuar foragido, a prolongar, portanto, o motivo principal para o decreto preventivo, é uma escolha que lhe trará os ônus processuais correspondentes, não podendo o Judiciário ceder a tal opção do acusado”, concluiu o ministro ao negar o habeas corpus.
Destaco, ao final, trecho daquele voto: “Logo, e trazendo o discurso para o caso concreto, se a autoridade judiciária competente decreta, fundamentadamente, uma prisão preventiva porque o réu está foragido ou porque tal condição passou a ser sopesada em decisão posterior à original, justifica-se, em tese, a manutenção da cautela extrema, na forma do art. 312 c/c 282 do CPP, para assegurar eventual aplicação da lei penal. E, enquanto essa ordem não for invalidada pelo próprio Poder Judiciário, não lhe poderá opor o sujeito passivo da medida um suposto” direito à fuga ” como motivo para pretender que seu status de foragido seja desconsiderado como fundamento da prisão provisória.”
Aguardemos o julgamento do recurso ajuizado, objetivando desconstituir a decisão historiada acima que poderá criar graves precedentes.
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